Um quadro em relevo todo ele feito de letras prateadas e gordas, recebe-nos dizendo qualquer
coisa como isto:
«oreflexoperguntou/aoreflexoquantosre/flexosoreflexoteme/oreflexorespondeu/aoreflexoqueoref
le/xotemtantosreflexo/squantosreflexosor/eflexotem».
Estas são as únicas palavras legíveis na
exposição, completadas pelos murmúrios que saem de dentro dos 12 potes de barro pintados de
branco e dispostos no chão lá no fundo da galeria. Tudo o mais são espelhos, espelhos cegos,
dir-se-ia.
Um vídeo, discretamente projectado quase rente ao chão e que mostra justamente a
operação de obliterar, de cegar, um espelho na sua vistosa moldura, completa e afirma uma
tripla situação de propositada dificuldade: dificuldade de ler, dificuldade de ouvir e dificuldade
em ver o que é suposto ou o que é esperado ver. E, no entanto, estes espelhos, ou brancos ou
pretos, de Catarina Saraiva (n.1973), alguma revelam na sua plena visibilidade de objectos. Eles
são, conforme a sua não cor respectiva, lugares de projecção os brancos e lugares de revelação
os negros.
Lugares de projecção os brancos porque se abrem como deserto de imagens a todo;
lugares de revelação os negros porque descobrem fragmentos de corpos escondidos, corpos
entre a pele e as vísceras, entre a cicatriz e a tatuagem, entre o cozer e o dobrar que a obra
anterior de Catarina já vinha revelando. De mão ou de parede, estes espelhos são sempre
eminentemente tácteis, não só no seu fabrico como no seu funcionamento imaginário. Corpos
para mexer que ora escondem ora revelam os segredos de outros corpos.
Isto é, afinal,
exactamente o que é suposto os espelhos fazerem. Entre o rumor e o tacto, entre a cegueira
(voluntária?) e a visão (interrompida?), os espelhos de Catarina Saraiva funcionam como um
grande ponto de interrogação, como uma questão maior que esta artista, pintora de formação,
põe não tanto à sua disciplina como ao duplo acto de ver e de perceber o que se vê. Uma mal
disfarçada ironia com o seu quê de inquietação, percorre cada objecto e cada conjunto: Vemos?
Ouvimos? Lemos? O melhor da arte dita contemporânea continua a ser a capacidade de
interrogar a partir de dentro, quero dizer, a partir da construção física, mental e poética de cada
objecto, sobretudo quando nos sabe comunicar a sua necessidade. É tal e qual o que acontece
com este espelho, agora nosso.
José Luís Porfírio