Quantos reflexos o reflexo tem
Catarina Saraiva e a impossibilidade da representação


Já com um percurso sólido em em Portugal, Catarina Saraiva (1973) apresenta nesta exposição um conjunto de objectos que se constroem sobre a questão do reflexo especular. Logo à entrada somos surpreendidos por dois objectos em forma de espelho, sem superfície reflectora, que foram forrados com o material acolchoado característico da prática da artista. Um pouco adiante, um quadro ostenta palavras do mesmo material, dizendo, sem qualquer pontuação, que «o reflexo perguntou ao reflexo quantos reflexos o reflexo tem e o reflexo respondeu ao reflexo que o reflexo tem tantos reflexos quantos reflexos o reflexo tem».

Na sala principal há mais espelhos cegos, uma instalação de vasos de barro pintados de branco de onde sai um murmúrio, e um vídeo que mostra o processo de pintura a negro da superfície reflectora de um desses espelhos. Outras peças de parede foram construídas com a referida técnica de acolchoado. Possuem uma organicidade que a escultura normalmente exclui, e invocam o trabalho socialmente feminino de coser e resguardar o corpo, tal como o quadro com a frase já mencionada estabelece analogias com os quadrinhos que saudam os visitantes nas casas pequeno-burguesas: um lavor bem diferente da arte, que marca a transformação da casa em lar, ou a transformação da casa em prolongamento da imagem da mulher.

Tudo nesta exposição se pode ver como extensão do corpo na obra artística, ou melhor, como questionamento desta afirmação, que está aliás na raiz da definição de artista. Como os seres humanos, os vasos de barro falam, embora seja difícil distinguir o que dizem. E os espelhos, que preenchem grande parte do espaço disponível, deviam reflectir, embora a sua superfície espelhada tenha sido apagada. Este é uma tema que a artista tem vindo a explorar obsessivamente no seu trabalho, onde objectos comuns se revestem por vezes de excrescências que, como dedos, invadem o espaço. Ao tornar impossível a capacidade de reflexão, Catarina Saraiva está a colocar a questão, em primeiro lugar, dos próprios fundamentos da história da arte, que é quase sistematicamente escrita como história da representação (ou seja, da imagem de uma realidade exterior) ou da negação dessa mesma reprsentação (isto é, da imagem da própria pintura ou escultura). A artista não nos apresenta nem uma, nem outra opção. A sua acção metódica de apagamento da superfície espelhada parece provir de uma negação da própria existência da imagem, de um chamar do corpo para a cena principal da arte, sem intermediários. Talvez paradoxalmente encontramos nesta obra afinidades com o trabalho de Helena Almeidasobretudo pela via desta negação constante e deste convocar do corpo que aqui, no caso de Catarina Saraiva, nunca se torna visível. Em ambos os casos, as artistas trabalham questões subjacentes à pintura como disciplina, embora raramente a tradição de pegar no pincel e tornar as formas visíveis por meio da tinta se manifeste em qualquer das obras. Não nos espantaria se o seguimento da sua pesquisa pessoal trouxesse, em algum momento, esse corpo que mantém oculto para um protagonismo maior e mais evidente. No fundo, reflectir é também pensar, e isso não é trabalho a que Catarina Saraiva se furte.


Luísa Soares de Oliveira