«o reflexo perguntou ao reflexo quantos reflexos o reflexo tem e o reflexo respondeu ao reflexo
que o reflexo tem tantos refelxos qunatos reflexos o reflexo tem». Este quebra-cabeças em
forma de lengalenga é a frase que recebe quem entra na Galeria Módulo para ver a exposição
«Espelho (meu)» de Catarina Saraiva. São letras negras que formam palavras. Palavras essas
feitas em pasta de enchimento e tecido, que introduzem um pensamento sobre o corpo feminino
e não só.
Catarina Saraiva expões individualmente desde 2004 e fez o curso de pintura na Faculdade de
Belas Artes de Lisboa, mas nunca exerceu esta técnica, pois os seus interesses plásticos cruzamse
logo com a sua anterior formação na área da moda. Das técnicas e meios que aprendeu,
surgiu um território híbrido que se aparenta mais com a escultura. Situa-se, ainda que não
intencionalmente, no âmbito das chamadas soft sculptures (por serem compostas
frequentemente com tecidos e materiais de enchimento), numa senda que tem como decana
fundamental a artista francesa Annette Messager, mas que em Portugal encontra seguidores em
artistas como Joana Vasconcelos, João Pedro Vale, Pedro Valdez Cardoso, Eva Alves e a
própria Catarina Saraiva.
Reflectindo agora sobre este conjunto de obras: o reflexo é uma preocupação própria da pintura,
o corpo é uma preocupação própria da moda. Em todo o caso, a arte ocupa-se de ambas as
questões e os objectos e instalações criados por Catarina Saraiva discursam desde sempre sobre
as questões ligadas à imagem e ao corpo.
Particularmente acerca daquilo que vemos sobre a nossa figura num espelho, objecto que nos
devolve a nossa imagem e sem o qual não saberíamos o nosso aspecto. Mas a imagem que nos é
dada, muitas vezes acaba por ser distorcida já não pelo espelho e sim pela nossa mente. «O
reflexo pode ser outra coisa…outro corpo», diz a artista. Talvez por isso os espelhos de Catarina
Saraiva sejam reflexos impossíveis. Eles recusam a sua função. Não servem como material
reflector e com isso são objectos de ansiedade. Ao ocultar a face reflectora do espelho, a artista
nega a imagem.
Numa outra obra em registo vídeo, Catarina Saraiva observa-se ao espelho e pinta as suas
próprias feições sobre ele, como que a negar a realidade dos fragmentos do seu rosto. Ela pinta
o seu reflexo, ficciona-o e anula o carácter temporário da imagem reflectida. A imagem é como
que agarrada, mesmo após o desaparecimento da personagem em questão. Ao mesmo tempo,
mais uma vez, é negada a função do espelho daí em diante.
Nestes espelhos que evocam a forma tradicional de um objecto de toilette, a beleza é
questionada e a construção da identidade é anulada. A desconstrução é a palavra mote para
Catarina Saraiva, pois ela apropria-se dos objectos que usamos até de forma íntima para lhes
retirar a função e com isso questionar a sua existência. Nesta exposição, a abordagem do tema
habitual da artista é mais subtil e emprega ferramentas novas dentro do seu percurso. É o caso
da instalação sonora com potes de barro em que, lá dentro de cada um, ecoam vozes que dizem:
«os teus olhos não são como duas pedras». Frase que ganha sentido quando se olha em frente e
se vê a representação de um espelho como um mosaico antigo, composto por pequenas pedras.
Pedras macias, para que não se parta o espelho de quem não gosta do seu reflexo…
Miguel Matos