Numa estrutura de madeira, pintada de preto, quatro espelhos encerram um circuito
visual desdobrado em abismo na virtualidade do seu reflexo. Dois dos espelhos,
suspensos nos limites mais afastados da estrutura e virados para dentro, têm o dobro da
altura dos outros dois que se viram para fora, suspensos no eixo que garante a simetria
da peça no sentido do seu comprimento. Três dos espelhos, contrariando a sua própria
ontologia, funcionam como suporte de fixação de palavras, cujas letras, feitas de pasta
de enchimento e forradas de tecido preto, se prolongam, em arrastamento, nas linhas
que as cosem.
Esta peça de Catarina Saraiva, com o título Eco e subordinada ao tema Abandono,
obedece a um rigoroso programa de duplicação, seja ela real (a simetria da estrutura ou
o número e as dimensões dos espelhos) ou virtual, consubstanciada nos reflexos que
física e conceptualmente expandem a peça nela integrando a potencialidade da presença
de um outro: aquele que, do fundo dos espelhos, assume simultaneamente a sua
condição de espectáculo e de espectador ou o outro (cada um de nós) que,
impossibilitado de neles encontrar a sua imagem, fora deles o observa; e que pode ser
ainda o autor das letras que Amália cantará ou aquele a quem, já cantadas, essas letras
se destinam.
É assim que num alinhamento de fados que tem como tema o Abandono, em As Penas,
Guerra Junqueiro partilha com a fadista um peso que nem o pranto alivia e, em Fria
claridade, a grande cidade de Pedro Homem de Mello se fecha sobre a solidão que
sobra de uma breve troca de olhares. É assim também que em Faz hoje um ano, José
Galhardo, o abandono que pede para não ser olhado desejando, logo a seguir, a
possibilidade de um regresso e da espera que ele implica, será o mesmo que, na Solidão
de david-Mourão Ferreira, habita a voz que canta a tristeza de não ser vista por ninguém
na pleonástica condição de vencida tão veementemente afirmada em Confesso, de José
Gallhardo. É ainda assim que em Lá porque tens cinco pedras, de Linhares Barbosa, se
lastima a pontaria de um olhar sedutor, e que em Quando os outros te batem beijo-te eu,
novamente de Pedro Homem de Mello, o poder da voz se fazer ouvir é diferido para um
olhar que se limita a confirmá-lo. Finalmente, é assim que em As Rosas do meu
caminho, de Alberto Janes, a fugacidade do perfume das rosas, opondo-se à
permanência da dor causada pelos seus espinhos, pertence ao mundo dos sonhos que
ninguém consegue animar tal como no Fadista louco, do mesmo autor, é preciso cantar
de olhos fechados por só assim se poder olhar para um coração sonhador. Mesmo
quando esse coração se esvazia e a esperança dá lugar à amargura em Job, de Luís de
Macedo ou quando o amor nascido do choro de quem ouviu cantar o fado acaba,
passando a ser chorado por quem o canta, como acontece em Cantei oFado de Amadeu
do Vale.
Em todos estes fados o abandono, sendo uma condição póstuma porque acontece depois
da morte do amor que, por sua vez, corresponde à morte de quem amou, encontra no
eco a sua figura mais sedutora. Nas Metamorfoses de Ovídio, Eco é a ninfa apaixonada
por Narciso que, rejeitada por ele, se transforma em rocha sendo condenada a repetir as
últimas sílabas de todas as palavras. É a presença reduzida a uma voz tal como Narciso
é a presença reduzida a uma imagem, ambas cativas da ilusão e da desilusão dos
sentidos. Com Eco, Catarina Saraiva devolve-nos, através da ressonância da imagem, o
abandono dessas presenças e de todas as outras cujo fado amoroso diariamente se
cumpre. Mas faz mais, e aí residirá a maior originalidade do seu trabalho: prescinde da
voz de Eco para lhe devolver a palavra. As frases coladas nos espelhos, por vezes
apenas legíveis quando reflectidas, pertencem a Amália e integram os poemas «Ilusão»
e «Eu vivo a vida perdida» do seu livro Versos. Numa dessas frases lê-se «Dai-me
flores». O verso completo é «Peço flores dai-me flores» e no que imediatamente o
antecede Amália curiosamente limita-se a pedir: « Cantai-me o último».
Maria João Gamito