Singular plural: I would prefer not to


Nenhum dos artistas preferiu não fazer. E o que seria não fazer se em arte, recorrendo aos termos de Dino Formaggio (Arte), o pensamento que nega é o pensamento que informa a obra que nasce de um ‘nada posto em acto’? Esse nada, como afirma o autor, não é um não-ser ou uma forma corrompida do ser. É antes ‘um movimento funcional e metódico’ de nulificação da negação – que dele faria um negativo – e do idêntico, que o fixaria na estabilidade de uma identidade positiva ou negativa. O que resulta deste movimento, conclui Formaggio, é a repetição e a diferença do processo do possível e da sua possibilidade, erigido agora sobre um princípio de nulificação da objetividade e do imobilismo da realidade dos seres e do mundo.

Mas Formaggio encontra ainda um significado fundamental no contexto da arte contemporânea, nascido da relação entre o nada e o idêntico, um significado que decorre da nulificação do idêntico entendida como exercício – o do nada – marcado pelo que considera ser o seu sentido proletário e que mais não é do que uma luta programaticamente empreendida contra as formas e as leis que as regem seja qual for o domínio em que se praticam. Aquilo que o autor designa por princípio metodológico de uma razão que admite em si a não-razão. É neste sentido que a arte, nascida do nada e portanto vinda ao mundo com a possibilidade da sua anulação, gera o possível, já não o que submissamente remete para uma realidade exterior e imutável, procurando uma submissa semelhança com ela mas, ao contrário, o que prescinde dessa semelhança suspendendo a sua relação com a realidade e que, como D. Quixote – poderíamos dizer como Bartleby – erra entre as coisas como signo (o signo errante de que fala Formaggio), sendo nessa errância, ou dessa errância, que nos interpela.

E se a errância implica desvio ou perda do caminho, o caminho de que a arte abdica é o que a conduz às coisas tornando-a refém, abismada como se deseja na sua auto-significação. Sem residência fixa e sem destino à vista – de novo poderíamos dizer, como Bartleby – esta arte acontece como um fluxo, imersa nos seus mecanismos próprios e na lógica relacional dos seus significantes, inacabada, imperfeita, habitante de um tempo gerúndio tornado presente provisório sempre que a obra surge do (seu) nada posto em acto.

Em termos aristotélicos, esse acto corresponde à actualização de uma potência que num tempo anterior se abriu à transformação, mas nesse processo ele é também a singularização de uma pluralidade, um possível que no presente – o seu aqui e agora – exclui todos os outros. Todavia é uma singularização instável, prestes a imergir de novo na potência plural que a nulifica e de onde há-de emergir como outra coisa porque, neste contexto, o exercício da singularidade é a manifestação possível do exercício do nada que, ainda para Formaggio, constitui a marca distintiva da consciência artística contemporânea, juntando num só desígnio o artista e o proletário que “sem repouso e sem domicílio, sem liberdade, justiça ou propriedade – isto é, sem identidade, [...] – [entrega] a sua causa [...] a si mesmo”. Como Bartleby.

Significando o propósito de realizar alguma coisa, neste contexto, o desígnio é o da re-significação do homem, cuja causa regressa a si, e o da auto-significação da arte cujo regresso a si a subtrai às tão tiranas como deterministas relações de causalidade com o que lhe é exterior. Entre elas definem-se as relações que põem em contacto os conceitos de original e cópia, em todas as categorias admitidas na prática mais geral da apropriação sistematizadas por James Elkins («From Original to Copy and Back Again») nos conceitos de cópias estritas, reproduções, imitações e versões. Mas também, e sobretudo, como propõe este autor, numa mais subversiva e radical categoria, anteriormente detectada por Rosalind Krauss («The Originality of the Avant-Garde: A Postmodernist Repetition»), segundo a qual o original pode descender da cópia no que, para Elkins, corresponde à possibilidade de dela derivar o que equivale a dizer que a cópia poder ser concebida como um original no pôr em acto que a actualiza.

Confinada ao princípio libertador resultante do sinal contrário que a arte imprime à vida, ou do estado de suspensão que o provoca, esta actualização é marcada pela ambiguidade do prefixo in-, que operativamente nega e integra. Termos como indecidibilidade, indeterminação, instabilidade, intrusão, inacabamento ou incompletude, aliam-se à indesejabilidade do génio criador e à entropia, para assinalar, como desígnio ou como assinatura (e o radical sign- pertence aos dois), a singularidade da obra, a sua originalidade ou a sua primariedade – as três propriedades que Elkins atribui ao original, tocado agora pela ausência mas tocado também pela possibilidade da sua actualização como presença.

São estes os conceitos que guiam o comentário às obras que Carla Rebelo, Catarina Saraiva, Ema M, Jorge Pinheiro, Manuel Botelho, Pedro Saraiva e Rui Macedo dão a ver nesta exposição assumindo que, como acontece ao narrador do conto de Melville quando se dispõe a falar de Bartleby, tudo o que se pode saber delas é apenas o que os olhos vêem.
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entre tudo, pouco ou nada é o título proposto por Catarina Saraiva para identificar o conjunto de pequenas peças que, na lógica de trabalhos anteriores, se alinham, individualmente ou aos pares, ao longo de três das paredes de um pequeno gabinete no interior do espaço expositivo. De forma aproximadamente oval e modeladas com pasta de papel reciclado, estas peças são animadas por subtis intervenções de pequenos pedaços de tecido e rendas coladas, impressões em negativo de minúsculos espelhos de brincar, costuras timidamente esboçadas com linha de algodão de cor branca, pó de ouro ou uma surpreendente lágrima de vidro.

Metáforas de cartas que na sua raiz latina (chartas) designavam as folhas de papel preparadas para receber a escrita, estas peças são fundamentalmente formas de esquecimento e de perda, ou ruínas de um pensamento que falhou o seu destino. Em cada uma delas, caligrafias indecifráveis de uma escrita que caminhou no sentido da ilegibilidade de que fala José Luís Brea (Un ruido secreto), são o que sobra de supostos palimpsestos de gestos e afectos que o tempo e a água amalgamaram, gestos e afectos inequivocamente femininos indiciadores do sentido de uma correspondência sobejante. Será esse o destino de todas as cartas: serem enviadas e dirigirem-se a alguém. Perdidas, vagueiam como signos entre as coisas, até que sobre elas possam pousar outros significados que as façam voltar a pertencer a alguém, ou seja, que as façam voltar a um sentido. E então, as histórias que elas continham, quaisquer que fossem, mudam de rumo como as linhas que na superfície das peças esboçam hipóteses de itinerários prematuramente abandonados, ou dobram sobre si os seus indecifráveis ruídos como as rendas que parcialmente as cobrem, ou se diluem na entropia das páginas sucessivamente rasuradas como as formas ainda inteligíveis que as rasuram, ou desparecem sob o pó que uniformemente as cobre, ou exibem o enigma de objectos simultaneamente estranhos ao seu corpo de carta e a quem a observa, ou simplesmente emergem como outras histórias, sempre idênticas às que pertenciam às folhas dobradas das cartas de onde saía um anel ou uma nota de banco imaginadas pelo patrão de Bartleby.

Dentro e fora da ficção, estas peças remetem para a sua condição de objecto-imagem e para a circunstancialidade de fragmento que ele comporta – fragmento no mundo e fragmento do mundo que nele tem origem e nele busca o seu sentido. É neste contexto que as peças de Catarina Saraiva convocam, sobrepondo-os, os conceitos de incompletude e de finitude. O resultado é a ruína: a das cartas de que as peças são a metáfora, a das peças na antecipação do seu futuro passado e a de Bartleby finalmente abandonado ao seu abandono.


Maria João Gamito<