A balada do corpo dócil


O espelho provoca, desde sempre, a ambiguidade. É uma máquina de produzir imagens, provavelmente a mais antiga de todas, mas é ao mesmo tempo um objecto que nada cria de original, limitando-se a reflectir a realidade que lhe faz frente. Como máquina, possui a faculdade de reflectir e multiplicar os corpos que se movem no seu campo. Ou seja, o espelho é o instrumento mais poderoso para a identificação entre o eu e o corpo: graças ao espelho, real ou imaginado, a cada corpo identificado como diferente de todos os outros corresponde uma identidade, e ambos estão tão indissociavelmente ligados que ninguém se pode pensar (ou reflectir) sobre si próprio sem que o conjunto de nervos, tecidos, músculos, e ossos, sem que a carne, no fundo, o permita. E se é impossível vermo-nos ou imaginarmo-nos no nosso interior de máquina orgânica, é talvez porque nunca nenhum espelho nos devolveu a imagem da escuridão em que ela funciona.

Mas não é desta máquina que aqui queremos tratar, antes da aparência, da bela aparência de uma identidade que se reflecte num espelho. Talvez não por acaso, o primeiro mito que se serve de uma máquina especular, o de Narciso, evoca a beleza inigualável de um jovem que nunca conseguiu desprender-se da sua própria imagem reflectida na superfície da água para estabelecer uma qualquer ligação com outrém. Na narrativa mítica, como na pintura das épocas históricas, o espelho surge com a função de revelação, não só da beleza, como da morte: e basta recordar o espelho terrível da Medusa que instantaneamente petrificava quem nele se olhasse. Para ficarmos ainda nos gregos, é deles o primeiro espelho representado, neste caso na superfíce de um vaso de cerâmica; e o espelho serve confirma a uma mulher que faz a sua ‘toilette’ que tudo está certo, que ela é efectivamente a mais bela, para retomar uma pergunta célebre (e não menos mítica) que uma certa rainha um dia lhe fez.
Nos trabalhos mais recentes de Catarina Saraiva, uma série intitulada “Agnosia”, há duas peças, “Devaneio” e “Solitude #2”, que nos recordam os espelhos. Deles, guardaram a forma circular do espelho de toucador, destinado à intimidade feminina. Mas, em vez de superfícies espelhadas, ostentam uma série de formas canulares, como dedos de luvas. A agnosia, sendo uma perturbação da percepção que leva o paciente a ver e sentir os objectos sem poder contudo identificar a sua função, dá-nos a chave para a compreensão primeira do sentido das peças: do espelho mantêm a aparência, mas não permitem a quem se coloque frente a eles iniciar o funcionamento da máquina que está na origem do reconhecimento e da identificação. Ou seja, a artista, e forçosamente o espectador que toma o lugar dela no momento da exposição, não podem identificar seja o que for: o olhar esbarra na forma reconhecível sem que seja possível a esse espectador usá-la em seu proveito.

Na realidade, a obra de Catarina Saraiva sempre enunciou questões relativas aos limites do corpo e da percepção. Servindo-se dos têxteis, do pvc, da pasta de enchimento e ocasionalmente do gesso, cria formas moles, sem a dureza tradicional da escultura, que cumprem a função de criar um envólucro ou uma massa a envolver. Nunca a sua escultura tem formas definidas, como se os corpos ou o vestuário (chamemos-lhe assim) pretendessem adaptar-se a condições específicas de uso, nunca previamente definidas. Aliás, uma série de esculturas de 2004, intitulada “Never fit a dress to the body, but train de body to fit the dress – Elsa Schiaparelli” mostrava uma espécide de manequins de alfaiate onde o corpo estilizado dos modelos de alta costura se acrescentava com apêndices invulgares, como se um olhar social, que determina também a moda, o mutilasse definitivamente. Tal como agora, nas obras da série “Agnosia”, pressentia-se uma vontade forte que moldava uma forma para receber uma figura – que seria, porque não dizê-lo, a de um monstro.

Esta vontade é forçosamente uma vontade política. As peças incluídas em “Agnosia” exacerbam elementos do corpo que, na cultura ocidental, permitem à mulher seduzir, exprimir-se, e até mesmo existir como ser social. Bocas que se multiplicam em alfinetes, mãos de muitos dedos, luvas gigantescas, tudo neste trabalho parece afirmar a submissão a um moldar do corpo que só por acidente se pode confundir com a máxima enunciada pela costureira Elsa Schiaparelli. Essa moldagem é bem mais forte e globalizante do que poderíamos supor à primeira vista; na realidade, ela procede de um processo há muito iniciado que visa o controle dos corpos nas sociedades contemporâneas, controle esse que vai muito além do dos ditames que a moda ou o gosto podem enunciar.

Foucault teorizou que sobre a progresssiva transferência que as sociedades modernas operaram sobre os mecanismos que permitiam moldar o corpo para o transformar em algo de útil para a sociedade. A pouco e pouco, o mundo que nos precedeu construiu um sistema de vigilância de todos os que nele habitavam, instituiu regras de comportamento que maximizavam o trabalho que cada indivíduo podia produzir, e estabeleceu os mecanismos de controle adequados para se assegurar de que nenhuma energia era desperdiçada. Hoje em dia, com os modernos sistemas de vigilância disseminados por todo o espaço público, o dispositivo panóptico é efectivamente a regra. Mas ele não passa apenas pela multiplicidade de câmaras de vídeo e registos electrónicos que assinalam cada passo que damos; atravessa também todos os meios de comunicação que quotidianamente transmitem a imagem acertada da beleza, da saúde e da juventude que deve supostamente ser o objectivo de cada um. O corpo é hoje um corpo dócil, segundo a expressão foucaultiana, tão submisso a modelos quanto à lei que cada vez mais invade a esfera da privacidade. O privado é cada vez mais público.
Assim, a obra de Catarina Saraiva ultrapassa em muito uma mera leitura de um trabalho sobre o género – que também é possível e legítima – para se afirmar como um comentário crítico sobre a contemporaneidade. Se de tudo nesta obra evoca o género feminino, se os laços e fitas que se associam a determinadas formas parecem prender ou enlaçar, como se o corpo aqui ausente deixasse para trás as marcas da sua presença submissa, as obras que nos são dadas a ver parecem querer subverter as condições em que esse corpo possível e ausente pode ser imaginado, apesar da tónica sobre as questões relativas à definição da identidade ser geralmente associada à obra desenvolvida por artistas mulheres,. É que o corpo dócil só pode existir num contexto onde as fronteiras antigas deixam de ter lugar, para dar lugar a espaços diferentes, cruzados por novos tipos de eixos e definidos por mapas instáveis, como são os espaços da contemporaneidade.

De facto, a visão total proporcionada pelo panóptico não se compadece com a antiga divisão entre a casa como lugar do privado e a rua como lugar daquilo que é público. Por isso, na obra desta artista, as fronteiras entre as antigas disciplinas artísticas, e sobretudo o encarar da escultura como uma das belas-artes, deixa de ter razão de existir. Cetim, lantejoulas, tecido estampado, pvc, todos os materiais tradicionalmente destinados às artes decorativas e desprovidos da perenidade que o mármore ou o bronze conferiam à obra de arte passam agora a ser matéria-prima da escultura. E, como se isto não bastasse, nem mesmo se pode falar de forma no sentido estrito: os ‘capitonés’ e almofadados, os dedos de plástico e as tiras de tecido tão leve aproximam mais estas peças das artes têxteis, atributo do sexo feminino desde sempre, do que da escultura como arte maior. Quase se diria estarmos perante almofadas, travesseiros, ou bonecos de pano.

Mas tudo isto tem muito pouco a ver com qualquer brincadeira. Por isso, o que o espelho nos reenvia não é a imagem da beleza, como o fazia antigamente, e muito menos a imagem própria, distinta de todas as outras existentes no mundo, e que permite a cada um afirmar-se a si próprio como distinto de todos os outros. O que a imagem no espelho nos mostra é um tecido para corpos dóceis, mesmo que essa docilidade seja aparente e seja apenas a pele de uma muda revolta.


Luísa Soares de Oliveira